PASSANDO PARA O OUTRO LADO

    Passei dos 50 e não vivi quase nada. No entanto, já sei que estou morrendo, entende? E preciso lutar para ainda me sentir vivo. O desgaste já sinto no corpo. E na mente. E na alma. Meu corpo não responde mais como antes, agora tudo é mais lento, mais pesado; a pele, o cabelo, os olhos, o sorriso, tudo isso é mudado. 

    Já não tenho mais o mesmo corpo, sou fisicamente outro. E não adianta saudades. Preciso é de aceitação. E a mente? Pelo menos a mente poderia ter-se desenvolvido. Desenvolveu-se? Sim, sem dúvida. Na mente ocorreu muito acúmulo de conhecimentos. Estudei línguas, ciência, filosofia, teologia. 

    Acumulei palavras, mas estou cada vez mais silencioso, o que dizer me escapa, foge de mim, também porque não tenho mais quem de fato me queira ouvir. Tem horas que esqueço palavras, elas não me chegam com tanta facilidade. O meu discurso quebra-se ao meio, e preciso de um tempo, sabe aquele branco mental? Isto acontece mais do que gostaria. 

    E eu que acreditava antes que ninguém pode tirar o que você adquire como conhecimento. Mentira! A natureza é assim. Tira também as coisas da mente. E não importa o quanto você se esforce. Esta natureza tão injusta! 

    Dizem que alguns, ao envelhecer, se tornam mais inteligentes. Sei disso. Conheço alguns poucos, que são exceção à regra. Infelizmente, eu não sou exceção. 

    Sou como a maioria. Diferentemente da maioria, tenho consciência disso e não me iludo. Trabalho diariamente para forçar meu cérebro a funcionar melhor. Preciso lutar contra a natureza para tentar manter minha consciência, mesmo morrendo cada dia um pouco. 

    Quanto à alma, esta também envelhece, ela como fonte dos sonhos e ilusões. Não sonho tanto nem nutro ilusões. Faço o que tem de ser feito. Tento sobreviver como posso.

    Reconheço a injustiça do sistema, o mal do mundo, e tudo. Resigno-me porém, como quem já tem muita coisa a perder. As forças da alma somem. Talvez está chegando o momento da entrega. E como vai ser depois? Depois de entregar a alma? Talvez um reviver, mas isto já é outro coisa. É questão de fé. Outra coisa que a este ponto da vida, pode ter-se perdido um pouco  no caminho:  a fé.

    No entanto, preciso escrever. Esta é uma luta, quase uma luta desesperada para ainda sentir-me vivo neste afã diário tão sem grandes coisas. A rotina tem que ser forçada a ter algum sentido.

    Estas reflexões são uma tentativa de segurar o sentido que a vida possa ter. Buscar um sentido é preciso. E se não houver, preciso inventar o sentido ou reinventar aquilo que perdi. O fato é este: vou escrever para me reencontrar, ando perdido de mim mesmo. Tenho que me retomar, pegando as rédeas de meus pensamentos, tenho que reencontrar o eu perdido que ficou em algum lugar no passado. Se for possível, não é mesmo?

    O fato é  a consciência de que se ultrapassou a metade da vida, esta é a certeza, porém sem estarmos certos do tempo ainda restante, tudo isso faz-me pensar no que valeu e no que não valeu até aqui e no que ainda posso fazer naquilo que me resta para ainda tentar ser feliz e morrer, tendo tido um sentido para viver, e talvez deixando algum bom vestígio nesta terra, depois da partida. 

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